Três poetas: vidas, luzes, sombras
Os novos livros de Ana Elisa Ribeiro, Bruna Mitrano e Laura Erber
Isto não é uma resenha. Talvez seja uma crônica. Ou apenas as primeiras anotações para um texto que eu gostaria de escrever. Um texto que pretendo escrever. Em que vou contar que, por essas mágicas de que apenas as pilhas de livros são capazes, calhou de coincidir aqui a leitura de três livros que, por não poderem ser mais diferentes entre si, despertam reflexões que me parecem importantes sobre os rumos da poesia nestas terras.
Esses três livros são: Menos ainda, de Ana Elisa Ribeiro, lançado por uma pequena, caprichosa e brava editora de Belo Horizonte, a Impressões de Minas; Ninguém quis ver, de Bruna Mitrano, da gigante Companhia das Letras; e As palavras trocadas, de Laura Erber, primeiro livro da coleção Arco, sob os cuidados da também poeta Sofia Mariutti na editora Âyiné, que é relativamente nova e também sediada em Belo Horizonte, mas que tem investido num catálogo “refinado”, principalmente de não-ficção europeia, e até pouco tempo se apresentava dividida entre Belo Horizonte e Veneza.
No texto que eu talvez escreva, as características dessas editoras, brevemente destacadas aqui, não serão casuais. Elas dizem muito também sobre esses livros. Assim como é impossível não ouvir nos poemas de cada um desses livros o eco do que lemos já nas pequenas biografias que estão nas orelhas deles. Nas informações sobre Bruna, o fato de ter nascido no “Complexo de Senador Camará, periferia do Rio de Janeiro”. Na de Laura, viver em Haia, na Holanda, de onde escreve, além de poemas, “ficção, ensaios, livros para crianças e, ocasionalmente, dedica-se à tradução”. Na de Ana Elisa, num tom muito próximo dos poemas (?), ficamos sabendo: “Teve sua carteira de trabalho assinada algumas vezes como professora, assistente editorial e editora. Passou a servidora pública federal em 2006, como docente, e aí a coisa engrenou, mas o tempo para ler e escrever literatura diminuiu. Diante de todos os impasses, manteve-se teimosa. Para a Receita Federal, é professora de uma autarquia. É doutora em Estudos Linguísticos – pós-graduação completa – em vários questionários e formulários. Raramente assina como poeta, embora essa atividade seja anterior a todas as outras”.
É claro que essas informações não podem ser descartadas pelo leitor, se ele quiser entender como os poemas todos do livro reviram e escancaram e questionam um certo caráter “documental” da poesia. Uma certa identidade entre a poeta de carne e osso e a pessoa que fala nos poemas. Uma voz poética constrangida a se apresentar como uma voz real, como um testemunho – mas se rebela: “não direi/ para que o poema/ não diga// não serei/ explícita// a implicitude/ não me denuncie// não transbordarei/ pela escrita// para que a palavra/ não me aponte/ como fonte”, é o que ela diz em “Desditos”.
No texto que quero escrever, sobre a forma como essas poetas se apresentam nos seus livros e as profundamente diferentes doses de luz e sombra que esses livros manejam, será relevante anotar que Ana Elisa é mineira, de 1975, enquanto Bruna e Laura são cariocas, nascidas em 1985 e 1979, respectivamente. E que a coincidência do local, entre Bruna e Laura, nos obriga a lembrar que há Rios de Janeiro dentro do Rio de Janeiro, Brasis dentro do Brasil. E a proximidade das datas, entre as três, deve ser vista com o cuidado de quem tenta entender as transformações recentes deste país.
No livro de Ana Elisa, ainda terei que insistir no futuro texto, esse atrito/abraço com a identidade é reforçado por dois poemas-objeto, podemos dizer assim, que vêm envelopados na orelha do livro: uma “ficha nacional de registro de hóspedes”, com informações (nome, data, local de nascimento etc.) que coincidem com aquelas constantes noutros cantos do livro. Destaque para, no campo reservado para a profissão, a interrogação “poeta?”, ecoando um questionamento que diversos poemas do livro, de diferentes maneiras, trazem. Até mesmo a assinatura da poeta é reproduzido no poema-ficha. O outro poema-objeto é ainda mais eloquente com relação à identidade: uma versão sintética e repleta de “afastamentos” da Carteira de Trabalho de uma Ana Elisa Ribeiro que aparece com foto e tudo, lançando perguntas aos seus leitores: “Poetas são empregáveis?” ou “Poetas sobrevivem ao fogo e a temperaturas altíssimas?”, entre outras.
No texto, vou precisar dizer que são três poetas que tenho a sorte de acompanhar desde seus primeiros momentos. Laura e Ana Elisa, desde o início dos anos 2000, quando apareceram com seus primeiros livros numa cena literária que era incrivelmente diferente da atual, ainda mais se pensarmos nos livros de poesia assinados por mulheres desde então e cada vez mais. Bruna, por sua vez, conheço desde Não, seu impactante livro de estreia pela Pátua, de 2016. E vou aproveitar para lembrar que, quando li Não por indicação de amigos, fui procurar por Bruna Mitrano no facebook e já naquele momento me deixou muito impactado o trânsito brutal entre a voz dos poemas e a outra voz, que me parecia tão mesma, das postagens cotidianas de Bruna. Em certo sentido, num texto que se apresente, preciso tentar explicar como vejo a radicalização desse processo – uma voz, outra voz, a mesma voz, um rosto verdadeiro colado aos poemas – desaguar no segundo livro de Bruna, este vermelhíssimo Ninguém quis ver, em que a poeta nos apresenta às pessoas de que sua vida foi feita até aqui. É duro isso, preciso parar e entender: “pessoas”, “sua vida”, “até aqui”. O nó da biografia dificilmente se desata. Ela invade. Insiste.
Se pegarmos a dedicatória do livro, “para Adelina”, e esticarmos até o último poema do livro, em que a avó da voz – sempre outra, sempre mesma – é nomeada completamente, Adelina Araujo Antonio, a costura complexa dessa poética que engole a vida se completa e podemos inverter: Bruna talvez não nos autorize a ler seus poemas sem considerar que tudo ali é real. Há uma fome real, abusos reais, crediários reais, vidas reais, mortes reais, pulsando em cada um daqueles poemas. E, mais que é impossível, é cruel esconder tudo isso novamente, porque é contra o silenciamento dessa realidade cruel que os poemas se levantam. Ninguém quis ver? Agora serão obrigados a ver. Gritando. Em vermelho. Nas vitrines mais distantes da realidade de que aquele livro resulta (cuidado com o peso dessa palavra...) e muito próximas daquele mar, logo no primeiro poema, já se impõe como metáfora de um Rio-de-Janeiro-Bossa-Nova que a poesia de Bruna afronta (e ecoe aqui a voz de Mano Brown: “muita treta pra Vinicius de Moraes”...).
Talvez sobre espaço no meu pretendido texto para falar de outro livro muito bonito da Ana Elisa, Álbum, da Relicário, 2018, em que os poemas folheiam um álbum de fotos de uma família, digamos, tradicional, tão “normal”, e por isso tão diferente da “família” que se forma em nossa cabeça enquanto lemos o livro da Bruna. Aliás, Ana Elisa, num poema do livro novo, dá mais ainda o que pensar sobre a relação entre a poesia e essas “famílias” que aparecem no seu Álbum e no livro da Bruna: “olha ao redor:/ tens uma vida desinteressante/ não nasceste de pais sofridos,/avô fugido de guerra/ uma vida assim não faz vingar/ literatura alguma”, é o que lemos em “Coach de escritora moderna”, poema exemplar de uma acidez que se espalha por todo o livro Menos ainda.
Mas como aparece a vida num livro como As palavras trocadas, de Laura Erber? Ou talvez seja o caso de perguntar, num outro texto, mais meditado do que este, por que, num livro tão repleto de elementos que nos ajudam a fazer pousar a atmosfera do livro em tempos e espaços determinados (ainda que desarticulados), a vida quase não se deixa aparecer? Ou deixa? É claro que há uma vida real que fala ali, é a partir de uma determinada vida que esses poemas se erguem para falar do amor, dos seus descaminhos, das formas que ele assume e não assume, numa espécie de quase-narrativa que unifica os poemas do livro. E me parece claro também o eco, nessa quase-narrativa, daquela vida que a biografia na orelha do livro denuncia por trás dele. O próprio título do livro, aliás, ecoa a vida de quem “troca palavras”, como escritora e tradutora.
A realidade rasga os poemas de Laura também, mas com modulações (mais sombra? menos luz?) muito diversas daquelas que encontramos em Bruna e Ana Elisa. São, igualmente, poemas de uma mulher histórica, concreta (a imaginação é concreta!), mesmo que a paisagem e a experiência que nela se desenrola apontem para sentidos tão diversos. Uma noite em Budapeste não é uma noite em Senador Camará: há abismos entre carícias e violências. E é por isso que eu não arriscarei, em qualquer texto, a aproximar o universo de As palavras trocadas, em que a delicadeza e a imaginação me parecem decisivas, e o mundo truculento que se revela no livro de Bruna Mitrano, em que não apenas é impossível sonhar e amar, mas não se pode sequer dormir, porque há ameaças por todos os lados – o teto que pode desabar é real, o “pai” que se converte em estuprador é real, morrer de fome é real, como sempre são reais as ameaças, confirmem-se ou não.
A mulher que fala em As palavras trocadas (e é mesmo uma mulher que vemos detrás dessas sombras?) conversa com um “você” persistente que também não se forma por completo de um poema a outro (“me devolvem uma por uma/ no cinzel dos beijos/ as palavras que troquei/ sem saber com quem/ trocava”) e, em volta dessas pessoas-sombras, vai se mostrando uma vida que, também de um poema a outro, escapa novamente: um museu pegando fogo, uma cidade que é um resto, “este/ vermelho/ podendo ter sido/ amarelo/ em pleno vôo/ descolado/ do real/ e de si mesmo”. Estamos sempre diante de “enigmas existenciais”, como saca Marcos Siscar na leitura precisa que faz no posfácio. E a impressão é de que saímos dos poemas como quem tenta remontar um sonho que já se desfaz na memória – e é claro que isso também é a vida, criada pelos poemas, aparecendo nos poemas, traindo os poemas: “a vida inteira/ não vivida”.
Enfim, é muita coisa para pensar em torno desses livros – sobre eles, para entendê-los, mas também para entender o contexto de que fazem parte e que, sem dúvida, passa por dentro deles. Uma hora dessas, preciso tentar escrever esse texto – ou talvez já o tenha escrito, com as limitações e hesitações inevitáveis para mim. De pronto, posso dizer que é uma sorte ter poetas como Ana Elisa Ribeiro, Bruna Mitrano e Laura Erber, com suas vidas tão diferentes, escrevendo e publicando ao mesmo tempo.